Descrição
Quando escreveu as palavras acima, Nietszche talvez exprimisse mais uma esperança que uma certeza. Mas o fato é que vivemos hoje, no mundo dito ocidental, na profecia de Nietzsche cumprida: é improvável acreditar no pecado original e, por causa disso, salvamo-nos de precisarmos ser salvos. Claro que o Ocidente não é o mundo todo. Mas a grande parte das pessoas que, nesta fatia do planeta, continue a acreditar no pecado e na necessidade de a alma ser salva quase certamente se sentirá uma minoria que muitos verão como um estágio mais primitivo da história universal, ainda por agarrar a marcha imparável do progresso da humanidade.
Como é fácil de calcular, faço parte dessa eventual minoria que, na fatia do planeta que é o Ocidente, continua crente de que todas as pessoas que existem, já existiram ou existirão, são por natureza pecadoras e, por isso, precisam salvar a alma. É verdade que fui educado a acreditar nisso, tendo nascido numa família cristã congregada numa igreja batista, mas também é verdade que mais tarde me converti à religião na qual fui educado.
Para quem acredita que o que o faz o mundo girar são as probabilidades e não a validade de decisões pessoais, mais ou menos conscientes, converter-se à religião na qual se foi educado é uma espécie de crime intelectual. Também por causa da influência de homens como Nietzsche, o Ocidente romantizou como pessoas admiráveis aquelas que rompem com seu próprio contexto. Os santos deixaram de ser os que se convertem a uma verdade superior a eles, e passaram a ser os que se convertem à verdade que eles mesmos criaram. Como o contraste fica mais à vista quando um filho destoa de um pai, o mundo moderno encanta-se com uma adolescência eterna, em que rompemos com os princípios da família que nos educou, com o sexo com que nascemos, com o primeiro professor que nos deu aulas, e assim por diante. A regra é termos de morrer longe do lugar que nos viu nascer ― uma espécie de parábola do filho pródigo de pernas para o ar, em que o regresso à casa é proibido.
No livro citado, o próprio Friedrich escreve acerca do “perigoso privilégio de poder viver por experiência e oferecer-se à aventura” e de como “foi bom não ter ficado ‘em casa’, ‘sob seu teto’, como um delicado e embotado inútil!”. Um “espírito livre” então lhe diz: “Você deve tornar-se senhor de si mesmo, senhor também de suas próprias virtudes. Antes eram elas os senhores; mas não podem ser mais que seus instrumentos, ao lado de outros instrumentos”. No evangelho de Nietzsche, o filho louvável é o que sai de casa do pai com estrondo, resoluto de que reconciliações são para os fracos. No cristianismo, o abraço do pai é um imã espiritual; para o filósofo alemão, é preferível o abraço de todo o mundo restante, como prêmio por essa aventura corajosa e destemida